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a árvore ao jardim

Crenças e poder - do dever em não devir

RESUMO:
A vontade humana rege-se pelo dever obrigado a ser cumprido através do poder ajuizado em crenças racionais e sociais normativas, instituídas pelos construtores dos autoritários e utilitaristas poderes, numa forma tão coerciva quanto adversa à natural existência de se ser. Dever que é feito de um território que não pára de falhar consigo mesmo, alimentando-se assim de um insuportável, maldito e indesejável ser. Ser esse, que ao continuar a existir com medo de ser condenado e na fé expectante de ser recompensado, prosseguirá social e ordeiramente num desígnio de não-ser.
E é sempre no devir do desejo e não no dever da vontade que nos situamos enquanto seres com pensar e afectos. Sempre esquecido, é ainda no devir, único trajecto não omisso, por assumir uma inegável conduta e acção não institucional e a não carecer de códigos, leis ou regras impostas, para que os homens em sua Natureza e interioridade, consigam continuar a Criar e a antecipar em toda a sua extensão o que na margem ou na excepção se lhes tem afirmado antagónico.

Palavras-chave: Arte; Filosofia; Valores.
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logo da Faculdade de Letras da Universidade do Porto
FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTOAnfiteatro Nobre
22 Março 2007 – quinta-feira – 9h00 às 20h30
23 Março 2007 – sexta-feira – 9h00 às 20h00
capa do livro da 11ª MESA-REDONDA Fotografia de Joaquim Hierro (Grand Place, Bruxelas,2004)

CRENÇAS E PODER - DO DEVER EM NÃO DEVIR (doc_pdf_comunicação)

Jean Baudrillard

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JEAN BAUDRILLARD (1929 —2007) faleceu no passado dia 6, com 77 anos de idade.
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De seguida, deixo-vos com alguns excertos de um outro livro seu, «AS ESTRATÉGIAS FATAIS»:
(…) A sedução é completamente diferente dessa mãe devoradora de que Freud tinha razão em ter medo. Se a Psicanálise (a Lei, o Pai, etc.) é aquilo que nos arranca ao desejo fusional da Mãe para nos devolver à soberania do nosso próprio desejo, a sedução é aquilo que nos arranca ao nosso próprio desejo, para nos devolver ao poder da soberania do mundo. É ela que arranca os seres à esfera psicológica do fantasma, do recalcamento, da outra cena, para os devolver ao jogo vertiginoso e superficial das aparências. É ela que arranca os seres ao reino da metáfora para os devolver aos das metamorfoses.
(…) Os sonhos foram, apesar de tudo, mais do que um “material”. Tiveram encanto e um encanto profético, antes de desaparecerem na interpretação, onde, é certo, ganharam o sentido que faltava: deixaram de ser sedutores (ou fatais, tornaram-se significativos. Os sonhos tinham um segredo) e Freud deu-lhes um sentido. Os sonhos estavam mais próximos do destino, com Freud aproximaram-se do desejo.
(…) Penso que há uma forma da aparência, uma figura ideal da aparência cujo poder de ilusão nos foi tirado pela psicanálise.
A Psicanálise é a consciência infeliz do signo, ela transforma todo o sinal em sintoma, todo o acto em lapso, todo o discurso em significação escondida, toda a representação em alucinação do desejo. Inacreditável estrabismo…

(…) Deus, o nosso Deus racional e racionalista, é, evidentemente, impotente para regularizar o curso das coisas. Sendo a sua razão de ser, caucionar e abençoar alguns encadeamentos causais que lhe permitirão formular sobre o mundo um juízo final, dissipar em alguns pontos o nevoeiro que impede a sua percepção luminosa do caos, para que possa surgir uma distinção mínima entre o Bem e o Mal – vindo do Diabo, a todo o momento perturbar estas combinações laboriosas, e vindo a sedução perturbar continuamente esta distinção do Bem e do Mal – não é de espantar que esse Deus esteja morto, deixando atrás de si um mundo perfeitamente livre e aleatório e a uma divindade cega, chamado Acaso, o cuidado de regular as coisas.

(…) À utopia do Juízo Final, complementar da do baptismo original, opõe-se a vertigem da simulação, a exaltação luciferina da excentricidade da origem e do fim.
É por isso que os deuses só podem viver e esconder-se no inumano, nos objectos e nos animais, na esfera do silêncio e do embrutecimento objectivo, e não na esfera do homem, que é a da linguagem e do embrutecimento subjectivo. O Deus-Homem é um absurdo. Um Deus que rejeita a máscara irónica do inumano, que deixa a metáfora animal, a metamorfose objectiva onde encarnava, em silêncio, o princípio do Mal, para oferecer a si mesmo uma alma e um rosto, reveste-se ao mesmo tempo, da psicologia hipócrita do inumano.
É preciso ser respeitoso para com o inumano. Assim fazem certas culturas, a que se chamou fatalistas, para as condenar, sem outras formalidades: porque elas encontraram os seus guias do lado do inumano, do lado do astro ou do deus animal, das constelações ou da divindade sem imagem. Partido grandioso este, o da divindade sem imagem. Nada de mais grandioso oposto à nossa iconolatria moderna e técnica.

(…) Quando falo do objecto e das suas estratégias fatais, falo dos homens e das suas estratégias inumanas. O ser humano pode, por exemplo, buscar nas férias um aborrecimento mais profundo do que o de todos os dias – um aborrecimento redobrado, porque feito de todos os elementos da felicidade e da distracção. O ponto importante é o da predestinação das férias para o aborrecimento, o pressentimento amargo e triunfal de não lhe podermos escapar. Como poderemos pensar que as pessoas vão renegar a sua vida quotidiana, procurando-lhe uma alternativa? Vão, pelo contrário, fazer dela um destino: redobrá-la nas aparências do contrário, fechar-se nela até ao êxtase, confirmar-lhe a monotonia com uma monotonia maior. A sobrebanalidade é o equivalente da fatalidade.
Se não compreendemos isto, não compreendemos nada do embrutecimento colectivo, uma vez que ele é um acto grandioso de ultrapassagem. Não estou a brincar: as pessoas não procuram divertir-se: procuram uma distracção fatal.

(…) Se a moralidade das coisas está no sacrossanto valor de uso, então viva a imoralidade do átomo e das armas que faz com que, mesmo sem eles, sejam submetidos ao prazo último e cínico do espectáculo! Viva a secreta regra do jogo que faz com que todas as coisas obedeçam à sua lei simbólica! O que nos há-de salvar, não é nem o princípio imoral do espectáculo, mas o princípio irónico do Mal.

(…) Nada nos pode assegurar uma fatalidade, e ainda menos uma estratégia. Aliás, a conjunção dos dois termos é paradoxal: como poderia haver fatalidade, se há estratégia? Mas justamente: o enigma é aquilo que há de fatalidade no âmago de toda a estratégia, é aquilo que transparece de estratégia fatal no âmago das estratégias mais banais, é o objecto cuja fatalidade seria a estratégia – alguma coisa como a regra de um outro jogo. No fundo o objecto ri-se das leis com as quais os mascaramos; ele quer figurar nos cálculos como variável sarcástica e deixar que as equações se verifiquem, mas a regra do jogo, as condições com as quais ele aceita jogar, ninguém as conhece, e elas podem mudar de uma só vez.
Ninguém sabe o que é uma estratégia. Não há suficientes meios no mundo para podermos dispor dos fins. E, portanto, ninguém é capaz de articular um processo final. O próprio Deus é obrigado a falsificar. O que é interessante, é que aquilo que transparece de um processo lógico inexorável através do qual o objecto se prende ao próprio jogo que queremos que ele jogue, e dobra, de alguma forma, a parada, vai mais longe do que os constrangimentos estratégicos que lhe impomos, instaurando assim uma estratégia que não tem finalidades próprias – uma estratégia “brincalhona” que faz fracassar a do sujeito, uma estratégia fatal no sentido de que o sujeito sucumbe aí à ultrapassagem dos seus próprios objectivos.
Somos cúmplices deste excesso de finalidade que há no objecto.
(…)

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