(…)… se é verdade que a análise nem sempre começa por ser edipiana, excepto para nós, não virá no entanto, a sê-lo numa certa medida? E em que medida? È verdade que ela se torna, em parte, edipiana, sob o efeito de colonização. O colonizador, por exemplo, abole a chefatura (assim como muitas outras coisas, a chefatura é apenas o começo…) ou utiliza-a para os seus próprios fins. O colonizador diz: o teu pai é apenas teu pai, nada mais, assim como o teu avô materno não tens nada que os tomar por chefes… faz as tuas triangulações no teu canto, mete a tua casa entre as da linha paterna e as da linha materna… a tua família é apenas a tua família e nada mais, a reprodução social não passa por lá embora seja precisa para fornecer um material que será submetido ao novo regime de reprodução… Então sim, esboça-se um quadro edipiano para os selvagens espoliados: Édipo de bairro de lata. Vimos, pois, que os colonizados são um exemplo típico de resistência ao Édipo: aqui com efeito, a estrutura edipiana não chega a fechar-se, e os seus termos continuam colados, em luta ou em cumplicidade, aos agentes da reprodução social opressiva (o Branco, o missionário, o cobrador de impostos, o exportador de bens, o homem notável da aldeia que se tornou agente da administração, os velhos que maldizem o Branco, os jovens em luta política, etc.). É tão verdade dizer que o colonizado resiste à edipianização como dizer que a edipianização procura fechar-se sobre ele. A edipianização é sempre um resultado da colonização, é preciso acrescentá-la a todos os processos referidos por JAULIN na Paix blanche. «O estado de colonizado pode conduzir a uma redução da humanização do universo, de tal modo que todas as soluções procuradas o sejam à medida do indivíduo ou da família restrita, o que tem por consequência uma anarquia ou desordem extremas ao nível do colectivo: anarquia de que os indivíduos serão sempre as vítimas, excepto aqueles que são beneficiados por um tal sistema, neste caso os colonizadores, que nesse mesmo tempo em que o colonizado reduzirá o universo, procurarão estendê-lo» (25). O Édipo é uma espécie de eutanásia do ETNOCÍDIO. Quanto mais a reprodução social escapa em natureza e extensão aos membros do grupo, mais se rebate sobre eles ou os rebate sobre uma reprodução familiar restrita e neurotizada cujo agente é o Édipo.
(…) Porque é preciso que a família apareça sob duas formas: uma, em que ela é evidentemente culpada, mas apenas no modo como a criança a vive, intensa e interiormente, e que se confunde com a sua própria culpabilidade; a outra, em que ela continua a ser uma instância de responsabilidade, face à qual se é – enquanto criança – culpado, e em relação ao qual nos tornamos – já adultos – responsáveis (o Édipo como doença e como saúde, a família como factor de alienação e como agente de desalienação – ainda que o seja apenas pelo modo como é constituído no transfert). Foi o que Foucault mostrou em páginas tão belas: o familiarismo inerente à psicanálise não destruiu a psiquiatria clássica – antes a consagra, a conclui. Depois do louco da terra e do louco do déspota, o louco da família; o que a psiquiatria do séc. XIX pretende organizar no asilo - «a imperativa ficção da família», a razão-pai e o louco-menor, os pais cuja única doença é a sua própria infância – tudo isto acaba fora do asilo, na psicanálise e no gabinete do analista.
(25) - Robert Jaulin, La paix blanche, introduction a l’etnocide, Ed. Du Seuil, 1970, p.309. Jaulin analisa a situação dos índios que os capuchinhos «convencem» a trocar a sua casa colectiva por casas «pessoais» (pp.391-400). Na casa colectiva o apartamento familiar e a intimidade pessoal baseiam-se numa relação com o vizinho definido como aliado, de modo que as relações interfamiliares eram coextensivas ao campo social. Mas, pelo contrário, na nova situação, produz-se «uma fermentação abusiva dos elementos do casal sobre si próprios» e sobre os filhos, de modo que a família restrita fecha-se num microcosmos expressivo em que cada um dos membros reflecte a sua própria linhagem enquanto se torna cada vez mais estranho às transformações sociais e produtivas. Porque o Édipo não é só um processo ideológico, mas é também o resultado da destruição do meio-ambiente, do habitat, etc.
GILLES DELEUZE e FÉLIX GUATTARI
ANTI-ÉDIPO – CAPITALISMO E ESQUIZOFRENIA
Assírio & Alvim, 2004
pgs. 174, 175, 282 e 283