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Cabe lembrar que ater-se à vivência, à experiência sensível, não é comprazer-se numa qualquer delectatio nescire, ou negação do saber, como é costume crer, por demais frequentemente, da parte daqueles que não estão à vontade senão dentro dos sistemas e conceitos desencarnados. Muito pelo contrário, trata-se de enriquecer o saber, de mostrar que um conhecimento digno deste nome só pode estar organicamente ligado ao objecto que é o seu. É recusar a separação, o famoso "corte epistemológico" que supostamente marcava a qualidade científica de uma reflexão. É, por fim reconhecer que, assim como a paixão está em acção na vida social, também tem seu lugar na análise que pretende compreender esta última. Em suma, é pôr em acção uma forma de empatia, e abandonar a sobranceira visão impositiva e a arrogante superioridade que são, conscientemente ou não, apanágio da intelligentsia.
Assim, por levar em conta a vivência quotidiana e a sabedoria popular que lhe serve de fundamento, talvez fosse necessário que a sociologia se transformasse naquilo que P. Tacussel denomina "sociosofia", isto é, uma disciplina que saiba integrar e compreender a "mística do estar-junto".
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... Significa saber distinguir, antes, aquilo que vem de baixo, a sociabilidade enquanto nasce, com a carga de afecto que lhe é inerente, do que as formas económico-políticas das quais, até então, se pensou que determinassem (ou sobredeterminassem) toda a vida social. Isso pode ser resumido pela admirável formula de FERNANDO PESSOA: "Uns governam o mundo, outros são o mundo". São sem dúvida aqueles que são o mundo que nos interessam. Aqueles dentre os quais também nos encontramos, e dos quais é indispensável circunscrever aquilo que propus chamar de "centralidade subterrânea". Para tanto é necessário repensar o vínculo social fora das grandes categorias que marcaram a modernidade: a História e a crítica. A História com sua direcção segura, é considerada como uma sequência de estágios que sucessivamente se superam. A crítica é propriamente o que permite essas superações. Ora como se sabe, as armas da crítica e a explicação da História são, justamente, o próprio da intelligentsia esclarecida.
A vivência, por sua vez, nada deve a esse historicismo, na própria medida que integra maneiras de ser arcaicas (archai) que, de modo recorrente, retornam à frente da cena. As paixões, as emoções, os afectos contam-se entre elas, cujo retorno em massa pode ser constatado em todos os domínios. Estes constituem, de facto, os elementos de base dos acontecimentos quotidianos, daquilo que advém sem se quer se tome conhecimento. Estão na base daquilo que BERGSON chamava de "duração" feita de pequenos "instantes eternos" que, de modo fractal, formam o mosaico de uma sociabilidade que não possui um sentido unívoco que pudesse ser determinado à priori, mas cujo conjunto é feito de significações ao mesmo tempo efémeras dentro do momento, mas não menos perduráveis em sua globalidade.
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MICHEL MAFFESOLI - ELOGIO DA RAZÃO SENSÍVEL