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a árvore ao jardim

"Corpo Utópico" de J. Bragança de Miranda (1)

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O que poderá ser um «corpo utópico»? É pensável um corpo que não tenha lugar ou que não esteja em algum lugar? Ou um corpo «perfeito» ou «glorioso» que escape à fragilização que o tempo desfere nos corpos? ... Na verdade só será possível tratar esta questão partindo da única «utopia» que a história nos legou, ou seja, a «alma» ou Psyké. O que nos faz adentrar no reino das imagens, pois a Psyké é basicamente um assunto de «imagem»... Nunca tanta inventividade se gastou com outro assunto, mas dele dependia demasiado, a imortalidade, a liberdade, a vontade, etc. Os modernos não fizeram menos esforços, mas agora para a «anular» ou «desmistificar», encontrando por todo o lado somente «corpo» e «corpos». As medicinas, as fisiologias, as neurologias continuam a circunscrevê-la, transformando-a em «espírito», «consciência», «cérebro»...
Depois dos modernos terem caçado o «espiritualismo», o fantasma na máquina, despojado de toda a divisão - e a Psyké era isso mesmo, uma divisão incorporal e impossível do corpo - , aquilo que ela visava: a de um corpo sem lugar, sem decadência, sem morte? Analisar este paradoxo equivale a interrogar o estatuto contemporâneo do corpo, no momento em que parece constituir uma utopia irreconhecível.
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A crise do corpo moderno, simultaneamente orgânico e racional, acabou por ser potenciada pela crítica fundamentalmente estética que se desenvolve no pós-guerra. Bom exemplo disso é a afirmação provocatória de Burroughs de «ofereceram-lhe um corpo para sempre. Para cagares sempre». Ou na crítica de Artaud aos «órgãos»: «O corpo é o corpo, existe por si e não precisa de órgãos, o corpo nunca é um organismo, os organismos são os inimigos do corpo, as coisas que nós fazemos amanham-se sozinhas sem o concurso de qualquer órgão, todo o órgão é um parasita, cumpre uma função parasitária destinada a manter vivo um ser que não deveria de existir»11. Se a crítica do orgânico vem, pelo menos, da antiga teologia, já a crítica aos «órgãos» é mais reveladora da tendência que procuramos apreender. Seria absurda se não estivesse em causa o «corpo do mundo», e não o corpo «físico». De facto, a crítica aos órgãos, por Burroughs, Artaud e também Deleuze, já não cabe na noção de «corpo» moderno, revelando que o «corpo» era, desde sempre excedido, por um feixe invisível de relações e de ligações, em reserva, que o «fixavam». São relações políticas, jurídicas, contratuais, mas também passionais, etc. Apenas num «mundo» de «fome» o estômago domina. Numa sociedade sem fome o estômago já não conta, ou conta de outro modo. E o mesmo se aplica a todos os «órgãos».

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O «corpo utópico» corresponde, então, ao momento em que utopia, sempre o outro mundo, se fixa na imagem do corpo. A sua extensão implica a realização técnica ou literária da metafísica pela utopia. É interessante verificar que, se não há utopia sem corpo, ou sem corpos, basta pensar nos 3 corpos de Republicade Platão, em muito poucas o «corpo» tem o lugar decisivo. É certo que nas distopias de Orwell ou de Huxley o corpo está obsessivamente presente, mas isso sucede para melhor revelar o estado das coisas. Do vasto corpus da literatura utópica apenas em Andrei Platonov encontramos uma reflexão essencial sobre o «corpo utópico»16 .

Por falta de espaço, limitemo-nos a algumas observações sucintas, para recolocarmos o problema. Em O Poço da Fundação, publicado apenas em 1987, mas que foi escrito nos meses de Inverno de 1929 e 1930, o «corpo utópico» entra em cena ao mesmo tempo que a «utopia» se esvanece, enterrada no «poço» que ela própria originara: o de construir uma «casa» perfeita, um mundo absolutamente feliz. A história tem a ver com a construção de uma casa para os futuros jovens nascidos da «revolução». Alegoricamente está em causa o retorno da «humanidade» a casa, da única maneira como pode ser pensada. Construindo-a. Sucede que o plano da casa é tão incomensurável e infixável, por razões misteriosas, que as fundações exigem um «poço» que vai crescendo desmesuradamente. Finalmente não há mais que um enorme buraco, esse imenso poço. Por uma «casa» que não chega a ser construída, de que apenas ficou o poço ...

(...) ... [ Continuação >>> «Corpo Utópico» - 2ª parte ]

11Antonin Artaud em Para Acabar com o juízo de Deus, Lisboa, &etc., p.152...

16 Andrei Platonov é autor de obras densas e fantasmagóricas, caso de O poço das Fundações e Chevengur, que tendo sido escritas nos finais dos anos 20, só foram publicadas em russo, nos anos oitenta.


JOSÉ BRAGANÇA DE MIRANDA - Excertos do Ensaio «Corpo Utópico»
Ensaio no livro organizado por M. Valente Alves e António Barbosa: O CORPO NA ERA DIGITAL,
Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, 2000








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