(…)
O poético e o psicanalítico não se confundem. O modo simbólico não é o do trabalho do inconsciente. Interrogar o poético segundo Freud é interrogar a psicanálise de acordo com o simbólico – sempre a análise em retorno, a única que mediante tal reversão, permite escapar à teoria como puro e simples exercício de poder.
A análise do dito espirituoso em Freud pode servir de fio condutor, já que não há em toda a sua obra uma diferença teorizada entre o campo propriamente sintomático e o campo da obra, da «criação artística» (o conceito de «sublimação», como se sabe, implica pouco rigor e um idealismo hereditário). Eis um ponto importante: se o poema não é o lapso nem sequer o dito espirituoso, alguma coisa falta na teoria do inconsciente para justamente tal se explicar.
(…)
No poético (o simbólico), o significante desfaz-se absolutamente – ao passo que no psicanalítico não faz mais do que mexer-se sob o efeito dos processos primários e distorcer-se segundo as pregas dos valores recalcados; mas distorcido, transversal ou acolchoado, permanece uma superfície indexada na realidade encapelada do inconsciente; no poético difracta e irradia no processo anagramático, já não cai sob a acção da lei que o erige, nem sob a acção do recalcado que o liga, já não há mais nada a designar, nem sequer a ambivalência de um significado recalcado. Não é mais que disseminação, absolvição do valor – e tal é vivido sem sombra de angústia, no gozo total. A iluminação da obra, ou do acto simbólico, reside neste ponto de não-recalcado, de não-resíduo, de não-retorno, onde se eliminaram o recalcamento e a repetição incessante do sentido no fantasma ou no feitiço, a repetição incessante do interdito e do valor, onde se processam sem entraves a morte e a dissolução do sentido.
(…)
Mas o poético nada cala, e nada o torna a assediar. Pois o que sempre é recalcado e calado é a morte. Aqui ela é actualizada no sacrifício do sentido. O nada, a morte, a ausência, é abertamente dita e resolvida: finalmente a morte está manifesta, finalmente, está simbolizada, ao passo que é apenas sintomática em todas as outras formações de discurso. Indica isto, decerto, o fiasco de toda a linguística, que vive da barreira de equivalência entre o que é dito e o que isto quer dizer, mas também o fim da psicanálise, que vive da barreira do recalcamento entre o que é dito e o que é calado, recalcado, negado, fantasmado, indefinidamente repetido no modo da denegação: a morte. Quando, numa formação social ou numa formação de linguagem, a morte fala, se fala e se troca num dispositivo simbólico, então a psicanálise já nada mais tem a dizer.
(…)
Valor mercantil, valor significado, valor recalcado/inconsciente – tudo isto é feito do que resta, do precipitado residual da operação simbólica; é este resto que por toda a parte se acumula e alimenta as diversas economias que regem a nossa vida. Ir além da economia – e se mudar a vida tem um sentido que só pode ser este: exterminar este resto em todos os domínios cujo modelo por excelência é o poético, graças à sua operação sem equivalência, sem acumulação, sem resíduo.
(…)
Tratar as palavras «como coisas»… para exprimir A coisa: o Inconsciente, para materializar uma energia latente. Trata-se sempre da armadilha da expressão, só que aqui o que é positivizado, como referencial é talvez o recalcado, o não-dito, o indizível – mas que algures retoma força de instância, se é que não de substância.
O pensamento ocidental não suporta, nunca suportou, no fundo, o vazio da significação, o não-lugar e o não-valor. Faz-lhe falta uma tópica e uma económica. É necessário que a reabsorção radical do signo inaugurado no poético (e, sem dúvida, também no Witz) se torne de novo o signo decifrável de um não-dito, de uma coisa que jamais nos confiará a sua cifra, mas que assim só mais valor adquire.
(…)
A «Coisa» esconde-se, e esconde outra coisa. Procure-se a força, procure-se o significante.
(…)
Na operação simbólica, não há referencial materialista, embora «inconsciente», mas sim, uma operação «anti-matéria».
(…)
ALÉM DO INCONSCIENTE
A questão é esta: o inconsciente, a energia, o potencial de afecto que, no seu recalcamento e pelo seu trabalho, está na base do desregramento, da dissolução, do deslocamento «expressivo» da ordem do discurso e opõe o seu processo primário aos processos secundários – terá cabimento fazer dele uma hipótese no processo do poético? E tudo se mantém, evidentemente: se o inconsciente é esta instância irreversível, então a dualidade processo primário/processo secundário é igualmente irredutível e o trabalho do sentido só pode consistir no ressurgimento do recalcado, na sua «transpiração» na instância recalcante do discurso. Sob este aspecto, não há diferença entre o poético e o neurótico, entre o poema e o lapso.
(…)
… importa – interditar à psicanálise a intromissão onde nada tem a dizer: no poético (obra de arte), no simbólico, na antropologia (primitiva).
O poético e o psicanalítico não se confundem. O modo simbólico não é o do trabalho do inconsciente. Interrogar o poético segundo Freud é interrogar a psicanálise de acordo com o simbólico – sempre a análise em retorno, a única que mediante tal reversão, permite escapar à teoria como puro e simples exercício de poder.
A análise do dito espirituoso em Freud pode servir de fio condutor, já que não há em toda a sua obra uma diferença teorizada entre o campo propriamente sintomático e o campo da obra, da «criação artística» (o conceito de «sublimação», como se sabe, implica pouco rigor e um idealismo hereditário). Eis um ponto importante: se o poema não é o lapso nem sequer o dito espirituoso, alguma coisa falta na teoria do inconsciente para justamente tal se explicar.
(…)
No poético (o simbólico), o significante desfaz-se absolutamente – ao passo que no psicanalítico não faz mais do que mexer-se sob o efeito dos processos primários e distorcer-se segundo as pregas dos valores recalcados; mas distorcido, transversal ou acolchoado, permanece uma superfície indexada na realidade encapelada do inconsciente; no poético difracta e irradia no processo anagramático, já não cai sob a acção da lei que o erige, nem sob a acção do recalcado que o liga, já não há mais nada a designar, nem sequer a ambivalência de um significado recalcado. Não é mais que disseminação, absolvição do valor – e tal é vivido sem sombra de angústia, no gozo total. A iluminação da obra, ou do acto simbólico, reside neste ponto de não-recalcado, de não-resíduo, de não-retorno, onde se eliminaram o recalcamento e a repetição incessante do sentido no fantasma ou no feitiço, a repetição incessante do interdito e do valor, onde se processam sem entraves a morte e a dissolução do sentido.
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Mas o poético nada cala, e nada o torna a assediar. Pois o que sempre é recalcado e calado é a morte. Aqui ela é actualizada no sacrifício do sentido. O nada, a morte, a ausência, é abertamente dita e resolvida: finalmente a morte está manifesta, finalmente, está simbolizada, ao passo que é apenas sintomática em todas as outras formações de discurso. Indica isto, decerto, o fiasco de toda a linguística, que vive da barreira de equivalência entre o que é dito e o que isto quer dizer, mas também o fim da psicanálise, que vive da barreira do recalcamento entre o que é dito e o que é calado, recalcado, negado, fantasmado, indefinidamente repetido no modo da denegação: a morte. Quando, numa formação social ou numa formação de linguagem, a morte fala, se fala e se troca num dispositivo simbólico, então a psicanálise já nada mais tem a dizer.
(…)
Valor mercantil, valor significado, valor recalcado/inconsciente – tudo isto é feito do que resta, do precipitado residual da operação simbólica; é este resto que por toda a parte se acumula e alimenta as diversas economias que regem a nossa vida. Ir além da economia – e se mudar a vida tem um sentido que só pode ser este: exterminar este resto em todos os domínios cujo modelo por excelência é o poético, graças à sua operação sem equivalência, sem acumulação, sem resíduo.
(…)
Tratar as palavras «como coisas»… para exprimir A coisa: o Inconsciente, para materializar uma energia latente. Trata-se sempre da armadilha da expressão, só que aqui o que é positivizado, como referencial é talvez o recalcado, o não-dito, o indizível – mas que algures retoma força de instância, se é que não de substância.
O pensamento ocidental não suporta, nunca suportou, no fundo, o vazio da significação, o não-lugar e o não-valor. Faz-lhe falta uma tópica e uma económica. É necessário que a reabsorção radical do signo inaugurado no poético (e, sem dúvida, também no Witz) se torne de novo o signo decifrável de um não-dito, de uma coisa que jamais nos confiará a sua cifra, mas que assim só mais valor adquire.
(…)
A «Coisa» esconde-se, e esconde outra coisa. Procure-se a força, procure-se o significante.
(…)
Na operação simbólica, não há referencial materialista, embora «inconsciente», mas sim, uma operação «anti-matéria».
(…)
ALÉM DO INCONSCIENTE
A questão é esta: o inconsciente, a energia, o potencial de afecto que, no seu recalcamento e pelo seu trabalho, está na base do desregramento, da dissolução, do deslocamento «expressivo» da ordem do discurso e opõe o seu processo primário aos processos secundários – terá cabimento fazer dele uma hipótese no processo do poético? E tudo se mantém, evidentemente: se o inconsciente é esta instância irreversível, então a dualidade processo primário/processo secundário é igualmente irredutível e o trabalho do sentido só pode consistir no ressurgimento do recalcado, na sua «transpiração» na instância recalcante do discurso. Sob este aspecto, não há diferença entre o poético e o neurótico, entre o poema e o lapso.
(…)
… importa – interditar à psicanálise a intromissão onde nada tem a dizer: no poético (obra de arte), no simbólico, na antropologia (primitiva).
Excertos do Capítulo : O WITZ, OU O FANTASMA DO ECONÓMICO DO FREUD
Do livro : A TROCA SIMBÓLICA E A MORTE II de Jean Baudrillard
Edições 70 – Arte e Comunicação
Do livro : A TROCA SIMBÓLICA E A MORTE II de Jean Baudrillard
Edições 70 – Arte e Comunicação