- OCTÁVIO PAZ e a POESIA como a verdadeira vida -
(…) O crescimento do eu ameaça a linguagem em sua dupla função: como diálogo e como monólogo. O primeiro se fundamenta na pluralidade; o segundo na identidade. A contradição do diálogo consiste em que cada um fala consigo mesmo ao falar com os outros; a do monólogo em que nunca sou eu, mas outro, o que escuta o que digo a mim mesmo. A poesia sempre foi uma tentativa de resolver esta discórdia através de uma conversão de termos: o eu do diálogo no tu do monólogo. A poesia não diz: eu sou tu; diz: meu és tu. A imagem poética é a «outridade»*. O fenómeno moderno da incomunicação não depende tanto da pluralidade de sujeitos quanto do desaparecimento do tu como elemento constitutivo da consciência. Não falamos com os outros porque não podemos falar connosco mesmo. Mas a multiplicação cancerosa do eu não é origem e sim o resultado da perda da imagem do mundo. Ao sentir-se só no mundo, o homem antigo descobria o seu próprio eu e, assim, o dos outros. Hoje não estamos sós no mundo: não há mundo. Cada lugar é o mesmo lugar e nenhum está em todas as partes. A conversão do eu em tu – imagem que compreenda todas as imagens poéticas – não pode realizar-se sem que antes o mundo reapareça. A imaginação poética não é invenção mas descoberta da presença. Descobrir a imagem do mundo no que emerge como fragmento ou dispersão, perceber no uno o outro, será devolver à linguagem sua virtude metafórica: dar presença aos outros. A poesia: procura dos outros, descoberta da «outridade».
Se o mundo como imagem se desvanece, uma nova realidade cobre toda a terra. A técnica é uma realidade tão poderosamente real – visível, palpável, audível, ubíqua – que a verdadeira realidade deixou de ser natural ou sobrenatural: a indústria é a nossa paisagem, nosso céu e nosso inferno. Um templo maia, uma catedral medieval ou um palácio barroco era alguma coisa mais do que monumentos: pontos sensíveis do espaço e do tempo, observatórios privilegiados de onde o homem podia contemplar o mundo e o transmundo como um todo. Sua orientação correspondia a uma visão simbólica do universo; a forma e a disposição de suas partes abriam uma perspectiva plural, verdadeira encruzilhada de caminhos visuais: para cima e para baixo, na direcção dos quatro pontos cardeais. Ponto de vista total sobre a totalidade. Essas obras não só eram uma visão do mundo, como estavam feitas segundo a sua imagem: eram uma representação da figura do universo, sua cópia ou seu símbolo. A técnica se interpõe entre nós e o mundo, fecha toda perspectiva à nossa mirada: para além de suas geometrias de ferro, vidro ou alumínio não há rigorosamente nada, excepto o desconhecido, a região do informe ainda não transformada pelo homem.
A técnica não é nem uma imagem nem uma visão do mundo: não é uma imagem porque não tem por objecto representar ou reproduzir a realidade; não é uma visão porque não concebe o mundo como figura, e sim como algo mais ou menos maleável para a vontade humana. Para a técnica o mundo se apresenta como resistência, não como arquétipo: tem realidade, não figura. Essa realidade não se pode reduzir a nenhuma imagem e é, ao pé da letra, inimaginável. O saber antigo tinha por fim último a contemplação da realidade, fosse presença sensível ou forma ideal; o saber da técnica aspira substituir a realidade real por um universo de mecanismos. Os artefactos e utensílios do passado estavam no espaço; os mecanismos modernos alteram-no radicalmente. O espaço não só se povoa de máquinas que tendem para o automatismo ou que já são autómatos, como é um campo de forças, um entrelace entre de energias e relações – algo muito distinto dessa extensão, ou superfície mais ou menos estável das antigas cosmologias e filosofias. O tempo da técnica é por um lado ruptura dos ritmos cósmicos das velhas civilizações; e por outro, aceleração e, por fim, abolição do tempo cronométrico moderno. De ambos os modos é um tempo descontínuo e vertiginoso que ilude, senão a medida, a representação. Em suma a técnica se funda em uma negação do mundo como imagem. E haveria ainda que acrescentar: graças a essa negação, há técnica. Não é a técnica que nega a imagem do mundo; é o desaparecimento da imagem que torna possível a técnica.
(…) A perda do significado afecta às duas metades da esfera, a morte e a vida: a morte tem o sentido que se lhe dá nosso viver; e este tem como significado último ser vida diante da morte. A técnica nada nos pode dizer sobre tudo isto. Sua virtude filosófica consiste, por assim dizer, em sua ausência de filosofia…
(…) A experiência da «outridade» abrange as duas notas extremas de um ritmo de separação e reunião, presente em todas as manifestações do ser, desde as físicas até às biológicas. No homem este ritmo se exprime como queda, sentir-se só em um mundo estranho, e como reunião, em acordo com a totalidade. Todos os homens, sem excepção, entreviram por um instante a experiência da separação e da reunião. No dia em que verdadeiramente… caímos no sem-fim de nós mesmos e o tempo abriu as suas entranhas e nos contemplamos com um rosto que se desvanece e uma palavra que se anula; na tarde em que vimos aquela árvore no meio do campo e adivinhamos, embora já não o recordemos mais, o que diziam as folhas, as vibrações dos céus, a reverberação do muro branco golpeado pela última luz; numa manhã estendidos na relva, ouvindo a vida secreta das plantas; ou de noite, diante das águas entre os altos rochedos. Sós ou acompanhados vimos o Ser e o Ser nos viu. É a «outra vida»? É a verdadeira vida, a vida de todos os dias. Sobre a outra que nos prometem as religiões, nada podemos dizer com certeza. Parece excessiva vaidade ou empolgamento com o nosso próprio eu pensar em sobrevivência; reduzir toda a existência ao modelo humano e terrestre revela certa falta de imaginação ante as possibilidades do ser. Deve haver outras formas de ser e talvez morrer seja apenas um trânsito. Duvido que esse trânsito possa ser sinónimo de salvação, ou perdição pessoal. Em qualquer caso, aspiro ao ser, ao ser que transforma, não à salvação do eu. Não me preocupa a «outra vida» além, mas só aqui. A experiência da «outridade», é aqui mesmo, a «outra vida». A poesia não se propõe consolar o homem da morte, mas fazer com que ele vislumbre que a vida e a morte são inseparáveis: são a totalidade. Recuperar a vida concreta significa reunir a parelha vida-morte, reconquistar um no outro, o tu no eu, e assim descobrir a figura do mundo na dispersão de seus fragmentos.
(…) O homem não vê o mundo: pensa-o. Hoje a situação transformou-se de novo: voltamos a ouvir, embora não possamos vê-lo…
(…) O homem não vê o mundo: pensa-o. Hoje a situação transformou-se de novo: voltamos a ouvir, embora não possamos vê-lo…
(…) Se o homem é transcendência, ir mais além de si mesmo, o poema é o signo mais puro desse contínuo transcender-se, desse permanente imaginar-se. O homem é imagem porque se transcende. Talvez consciência histórica e necessidade de transcender a história não sejam mais do que os nomes que agora damos a este antigo e perpétuo desgarramento do ser, sempre separado de si. O homem quer identificar-se com suas criações, reunir-se consigo mesmo e com os seus semelhantes: ser o mundo sem cessar de ser ele mesmo. Nossa poesia é consciência da separação e tentativa de reunir o que foi separado. No poema, o ser e o desejo de ser pactuam por um instante, como o fruto e os lábios. Poesia, momentânea reconciliação: ontem, hoje, amanhã; aqui e ali; tu, eu, ele, nós. Tudo está presente: será presença.
(*) O autor usa o termo otredad, um neologismo. A tradução para outridade é também um analogismo
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