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a árvore ao jardim

Abarcar

Mesmo que sejamos capazes, não conseguimos abarcar tudo.

Os barcos de hoje, ou são muito pequenos e marejam vazios, ou são muitos grandes e navegam carregados demais.

Os vazios por pequenos e inconstantes, percorrem mares à deriva, à procura de uma substância que os não afunde.

Os carregados por grandes e seguros, enchem-se do muito que os levará a um sem fim de portos em aguardas fundadas.

Por aparecer ou aparecidos, esquecidos ou por esquecer, próximos ou distantes, uns e outros, barcos vazios e barcos cheios, aglomeram-se nesse agitar de ondas que por fim, os justaporá à transbordante quietude de uma térrea chegada.

«Corpo Utópico» (2)

(...)
As máquinas de criação do corpo utópico, que misturam a técnica com o bios, que separaram a imagem da carne, deveríamos opor outras ligações. À vontade fundamento, de fundações, que levam apenas ao nihilismo realizado tecnicamente, seria preciso encontrar uma outra forma de responder. Todo o esforço está em sair do poço. Num outro momento da modernidade, em que se instalava o diálogo mortífero entre o abismo da liberdade e a máquina, Poe escreveu um conto intitulado «O Poço e o Pêndulo»22. Preso por um «poder» desmesurado23 que lhe destinava o pior, descobriu que lhe estava destinado um «poço», de que às escuras não conseguia medir a profundidade. Preferia, lê-se, qualquer outra morte do que arriscar-se aos «terrores dos poços», «evocador do inferno e considerado vulgarmente a última Tule de todos os seus castigos». O «terror do poço» é esclarecido antes pela opressão provocada pela «simples ideia da profundidade interminável da descida». Não precipitar-se, ter frieza, eis a lição, se é verdade que «mesmo no túmulo não está tudo perdido. Ou então não há imortalidade para o homem». Quando a morte é certa e o corpo mutável, desaparece necessariamente a «imortalidade» da Psyké e o imutável. A única forma de lha retirarem seria fazê-lo precipitar-se no «poço». Os torturadores vão, com lógica inapelável, fazer intervir outras máquinas de destruição da «Psyké». Primeiramente o pêndulo, que baixava rigorosa e matematicamente a cada movimento e que tinha uma lâmina que acabaria por cortá-lo ao meio. Descida controlada, maquínica, milimétrica mesmo, que o herói afronta com astúcia, libertando-se das amarras que o prendiam. Depois, uma terceira máquina entra em movimento, que põe em brasa as paredes de ferro do cárcere. Finalmente as próprias paredes se tornam numa máquina, começando a mudar de forma e avançando para o empurrarem para o poço, em que se nega a lançar-se:«"A Morte", disse eu, "qualquer morte que não do poço!"». Resistindo ao movimento que o lançava para o poço: «Recuei - mas as paredes, que se fechavam, empurravam-me irresistivelmente para a frente. Por fim, para o meu queimado e contorcido corpo já não havia uma polegada de espaço no solo firme da prisão. Deixei de lutar, mas a agonia da minha alma encontrou saída num grito alto, longo e final de desespero. Senti-me cambalear à beira do poço - voltei a cara.». No final já só restava voltar a cara ao «poço». O que parece insuficiente. E eis que, no último momento, um acaso merecido lhe permite escapar. A revolução chega e com ela «um braço estendido apanhou o meu, quando caía, desmaiando para o abismo».

As máquinas de Poe estavam ao serviço de um hiperpoder de que o poço é a imagem invertida e que acabou de o tragar. Cento e cinquenta anos volvidos são estas máquinas, que realizam o «corpo» com que todo o poder histórico sonhou. A parábola de Poe é instrutiva: a resposta não está num outro corpo, nem num corpo melhor. Fundamentalmente, não está no corpo utópico. Basta um «braço» certo, na altura certa. É apenas isso que podemos e devemos esperar. Demasiado insuficiente, porque poderá nunca vir? Isso já não depende de nós. É preciso que esse braço já tenha vindo, em cada um. Só é aceitável o acto que propicia a vinda desse «braço», ou duma «mão» ou de uma «palavra» certa. A vir, sendo o braço certo, poderá ser o braço de um outro homem, de um «monstro» ou de um «cyborg», mas será sempre um braço humano.

22 Cf. Edgar Allan Poe - Contos Incompletos , II volume, trad. de Manuel Barbosa, Coimbra, Editorial «Saber», 1994, pp. 193-219

23A acção passa-se em Toledo, e trata-se, de facto, da «inquisição», o que não admira, pois para o herói, estavam destinados os «horrores morais» e não os horrores físicos.


JOSÉ BRAGANÇA DE MIRANDA - Excerto do Ensaio «Corpo Utópico»
Ensaio no livro organizado por M. Valente Alves e António Barbosa: O CORPO NA ERA DIGITAL,
Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, 2000





"Corpo Utópico" de J. Bragança de Miranda (1)

(...)
O que poderá ser um «corpo utópico»? É pensável um corpo que não tenha lugar ou que não esteja em algum lugar? Ou um corpo «perfeito» ou «glorioso» que escape à fragilização que o tempo desfere nos corpos? ... Na verdade só será possível tratar esta questão partindo da única «utopia» que a história nos legou, ou seja, a «alma» ou Psyké. O que nos faz adentrar no reino das imagens, pois a Psyké é basicamente um assunto de «imagem»... Nunca tanta inventividade se gastou com outro assunto, mas dele dependia demasiado, a imortalidade, a liberdade, a vontade, etc. Os modernos não fizeram menos esforços, mas agora para a «anular» ou «desmistificar», encontrando por todo o lado somente «corpo» e «corpos». As medicinas, as fisiologias, as neurologias continuam a circunscrevê-la, transformando-a em «espírito», «consciência», «cérebro»...
Depois dos modernos terem caçado o «espiritualismo», o fantasma na máquina, despojado de toda a divisão - e a Psyké era isso mesmo, uma divisão incorporal e impossível do corpo - , aquilo que ela visava: a de um corpo sem lugar, sem decadência, sem morte? Analisar este paradoxo equivale a interrogar o estatuto contemporâneo do corpo, no momento em que parece constituir uma utopia irreconhecível.
(...)

A crise do corpo moderno, simultaneamente orgânico e racional, acabou por ser potenciada pela crítica fundamentalmente estética que se desenvolve no pós-guerra. Bom exemplo disso é a afirmação provocatória de Burroughs de «ofereceram-lhe um corpo para sempre. Para cagares sempre». Ou na crítica de Artaud aos «órgãos»: «O corpo é o corpo, existe por si e não precisa de órgãos, o corpo nunca é um organismo, os organismos são os inimigos do corpo, as coisas que nós fazemos amanham-se sozinhas sem o concurso de qualquer órgão, todo o órgão é um parasita, cumpre uma função parasitária destinada a manter vivo um ser que não deveria de existir»11. Se a crítica do orgânico vem, pelo menos, da antiga teologia, já a crítica aos «órgãos» é mais reveladora da tendência que procuramos apreender. Seria absurda se não estivesse em causa o «corpo do mundo», e não o corpo «físico». De facto, a crítica aos órgãos, por Burroughs, Artaud e também Deleuze, já não cabe na noção de «corpo» moderno, revelando que o «corpo» era, desde sempre excedido, por um feixe invisível de relações e de ligações, em reserva, que o «fixavam». São relações políticas, jurídicas, contratuais, mas também passionais, etc. Apenas num «mundo» de «fome» o estômago domina. Numa sociedade sem fome o estômago já não conta, ou conta de outro modo. E o mesmo se aplica a todos os «órgãos».

(...)
O «corpo utópico» corresponde, então, ao momento em que utopia, sempre o outro mundo, se fixa na imagem do corpo. A sua extensão implica a realização técnica ou literária da metafísica pela utopia. É interessante verificar que, se não há utopia sem corpo, ou sem corpos, basta pensar nos 3 corpos de Republicade Platão, em muito poucas o «corpo» tem o lugar decisivo. É certo que nas distopias de Orwell ou de Huxley o corpo está obsessivamente presente, mas isso sucede para melhor revelar o estado das coisas. Do vasto corpus da literatura utópica apenas em Andrei Platonov encontramos uma reflexão essencial sobre o «corpo utópico»16 .

Por falta de espaço, limitemo-nos a algumas observações sucintas, para recolocarmos o problema. Em O Poço da Fundação, publicado apenas em 1987, mas que foi escrito nos meses de Inverno de 1929 e 1930, o «corpo utópico» entra em cena ao mesmo tempo que a «utopia» se esvanece, enterrada no «poço» que ela própria originara: o de construir uma «casa» perfeita, um mundo absolutamente feliz. A história tem a ver com a construção de uma casa para os futuros jovens nascidos da «revolução». Alegoricamente está em causa o retorno da «humanidade» a casa, da única maneira como pode ser pensada. Construindo-a. Sucede que o plano da casa é tão incomensurável e infixável, por razões misteriosas, que as fundações exigem um «poço» que vai crescendo desmesuradamente. Finalmente não há mais que um enorme buraco, esse imenso poço. Por uma «casa» que não chega a ser construída, de que apenas ficou o poço ...

(...) ... [ Continuação >>> «Corpo Utópico» - 2ª parte ]

11Antonin Artaud em Para Acabar com o juízo de Deus, Lisboa, &etc., p.152...

16 Andrei Platonov é autor de obras densas e fantasmagóricas, caso de O poço das Fundações e Chevengur, que tendo sido escritas nos finais dos anos 20, só foram publicadas em russo, nos anos oitenta.


JOSÉ BRAGANÇA DE MIRANDA - Excertos do Ensaio «Corpo Utópico»
Ensaio no livro organizado por M. Valente Alves e António Barbosa: O CORPO NA ERA DIGITAL,
Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, 2000








O dinheiro e a crise ou a banca construtora da crise

- Aprenda a defender-se dos bancos que usurpam o seu dinheiro!
Com algumas pequenas dicas, é esta a ideia que nos dá este vídeo de 11 minutos:


É ridículo e até caricato, chegarmos a este ponto, o de estarmos completamente desprotegidos e à mercê desta legal ladroagem: os bancos. As leis e o mercado, as comissões impostas ao dinheiro, o consumo e o luxo em vida fácil, dá-nos com a crise em cima, é isso. Vãs e dúbias palavras, estas as de divertidas acções, fora de senso comum, o de trabalhar na ilusão de ter-se algo, a saber de antemão no ser-se roubado legalmente e por quais obrigatoriedades impostas. Acções estas, deixadas à deriva, claro está, em poiso certo para a generalizada destruição que lhe está subjacente.

Para o bem e para o mal, as leis dos homens fazem-se e desfazem-se!
Sempre assim foi.

E agora pergunto: Até quando vamos permitir que estas leis continuem a construírem-nos para um qualquer mal ou infortúnio?

Não estamos a considerar estes e outros erros. É preciso ainda chegarmos mais longe com esta enormidade do que é o enganar a esganar todo e qualquer pessoa que se quer tida de um certo por certeiro 'cidadão' alvo.




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